Opinião: Impunidade | H.G. Cancela

22584662Autor: H.G. Cancela
Ano de Publicação:
2014
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 222
ISBN: 9789896414313
Origem: Empréstimo
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Sinopse: Um homem caminha primeiro a pé, tacteando no escuro, depois de automóvel, conduz toda a noite, dorme na pressa de um hotel, retoma a viagem primeiro ainda em terras portuguesas, depois em Espanha.
Em Sevilha sobe ao último andar de um prédio. Tem a chave da porta, a casa está desarrumada e nela se encontram duas crianças adormecidas quase entre sinais de abandono. «Aproximei-me da cama maior. O rapaz tinha apenas as cuecas vestidas. Magro, as pernas esguias, o cabelo comprido. Ouvia-se a respiração. Rápida, regular, entrecortada por pausas de onde emergia com uma aspiração sufocada. Da outra cama, não se ouvia nada. A menina estava despida, com o cabelo espalhado pelo rosto e as pernas cobertas com a ponta do lençol. Apoiei-me nas grandes, debrucei-me e afastei-lhe o cabelo. Não se mexeu. Respirava devagar, com os lábios entreabertos e um quase insensível movimento do peito. Parecia fria, apesar do calor, o corpo contraído, a cabeça colada aos joelhos. Tinha os lençóis húmidos em redor das coxas. Na penumbra, a sua pele esbatia-se contra o tecido branco
Este é o inicio de uma história inesperada, dura, com o «esplendor das coisas ameaçadas».”

Opinião: Fazer parte da Roda dos Livros tem sido uma experiência enriquecedora a vários níveis, e posso afirmar já, com alguma dose de certeza, que me tornou numa leitora diferente. Não melhor, nem pior, simplesmente diferente; mais atenta a certos aspetos dos livros e mais desperta para o essencial e menos para o acessório. E, depois, tem-me proporcionado contacto com livros e escritores que não teria lido de outro modo. Impunidade, de H.G. Cancela, escritor português, pouco conhecido e pouco discutido, foi um dos livros que me chegou da Roda, catalogado como “difícil, perturbador, opressivo” pelos amigos que o leram e por isso tinha medo de o iniciar, apesar da enorme vontade.  

Acho que é bom ler este livro sem saber quase nada do que trata, por vários motivos, mas em especial porque me parece ser daqueles livros que devemos ler sem ideias pré-concebidas e de mente aberta. São vidas de tal modo distantes da nossa (ou, pelo menos, da maioria das pessoas) que é preciso uma boa dose de aceitação (e não resignação) perante aquilo que o autor nos apresenta. Acho que devemos ler com um espírito crítico, mas tendo sempre presente a diversidade de vidas e crenças, bem como do limite ténue entre o que está certo e o que está errado.

Este livro pode tornar-se revoltante por diversas vezes, em especial porque mexe de forma perversa com algo que para mim é intocável, as crianças. O roubar da infância e da ingenuidade chocam-me e revoltam-me, mais do que tudo porque sou mãe. Mas eu sei que é uma realidade e, ainda que não seja propriamente algo sobre o qual deseje muito ler, não consigo deixar de me sentir enriquecida quando reflito sobre tudo aquilo em que acredito ao ler sobre vidas tão moralmente distantes da minha.

Digo sem grandes dúvidas que H.G. Cancela foi dos melhores escritores portugueses que já li, ainda que um livro pareça pouco para o afirmar. Mas muito dificilmente será um acaso. A forma exímia como retrata a obsessão e a amoralidade, muitas vezes consubstanciadas na violência, cativam o leitor e fazem com que seja muito difícil parar de ler. Mas sinto a necessidade de chamar a atenção para o facto de não me parecer que este livro seja para qualquer leitor. Se depois de lerem o que escrevi acharem que é para vocês, gostaria muito de saber o que acharam da leitura.

É de livros como Impunidade que se faz o enriquecer de um leitor, quando as palavras mexem connosco e com os nossos medos e crenças mais viscerais. Foi isso que este livro fez comigo e por isso se tornou uma leitura tão marcante. Um enorme obrigado à Cris pelo empréstimo.

«O poder é sempre proporcional ao mal que produz»,
prosseguiu, por fim. Esse seria o único princípio. De todas as formas que o mal assumia, talvez o mais terrível fosse aquele que se afirma na consciente indiferença pela vítima. Que lhe identifica o nome, que lhe conhece o rosto, mas que prefere ignorá-lo como coisa acessória. Aquele para quem a vítima não é um meio nem um fim, apenas processo. Esse mal poderia ou não ter um rosto, mas teria sempre um nome. O nome da vítima.

Classificação: 5/5 – Adorei 

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Sobre Célia

Tenho 38 anos e adoro ler desde que me conheço. O blogue Estante de Livros foi criado em Julho de 2007, e nasceu da minha vontade de partilhar as opiniões sobre o que ia lendo. Gosto de ler muitos géneros diferentes. Alguns dos favoritos são fantasia, romances históricos, policiais/thrillers e não-ficção.