Autor: Vários
Organização: João Barreiros
Ano de Publicação: 2012
Editora: Saída de Emergência
Páginas: 448
ISBN: 9789896374778
Origem: Comprado
Opinião: Lisboa no Ano 2000 – Uma Antologia Assombrosa Sobre uma Cidade que Nunca Existiu é uma antologia de contos que imaginam como teria sido Lisboa no ano 2000 se as previsões que se fazia há 100 anos tivessem sido concretizadas, num ambiente em que a eletricidade era a força motriz do dia-a-dia. Achei a premissa muito interessante e o facto de ser raro publicar-se por cá coisas do género, ainda para mais fruto da imaginação de autores portugueses, entusiasmou-me para esta leitura.
O balanço final é positivo. Como seria de esperar, não gostei de todos os contos por igual e achei mesmo que por vezes a diferença entre a qualidade dos mesmos acaba por ser um handicap do livro, mas isso é uma questão difícil de ultrapassar tendo em conta a diversidade de autores e de estilos. Destaco os contos Taxidermia, Electrodependência, O Turno da Noite como os meus preferidos, mas a grande maioria das histórias aqui presentes tem os seus méritos, pela imaginação e esforço conjunto para criar um fio condutor entre os contos. Esse acaba por ser, precisamente, uma das mais-valias da antologia, a sensação que fica no final de que, como se costuma dizer, “o todo é maior que a soma das partes”.
Caso estejam interessados, abaixo estão algumas impressões individuais para cada conto da antologia:
O Turno da Noite (João Barreiros) – A história que inicia a antologia, da autoria do seu organizador, é um excelente começo. O protagonista, José Silvério, é um fiscal de uma linha de metro que circula debaixo do Tejo e tem uma capacidade especial: consegue ver os mortos que vagueiam nas carruagens, tentando agarrar-se às vidas dos mais suscetíveis. Um tremor de terra que afeta a circulação da composição onde Silvério viaja é o catalisador de vários acontecimentos, num conto visualmente forte e com um ambiente opressivo, que brilha pela criação de um mundo credível – mais notável ainda por ser construído em tão poucas palavras.
Venha a mim o Vosso Reino (Ricardo Correia) – O protagonista deste conto é um responsável da Igreja, que se envolve com a Rainha e que é suspeito do desaparecimento de freiras-ninja (sim, leram bem!). Achei a premissa e o desenvolvimento deste conto desinteressantes, e por isso não gostei deste conto.
Os Filhos do Fogo (Jorge Palinhos) – O narrador desta história desenvolve uma estranha relação com o poeta Casimiro Gonçalves, depois de o conhecer num jantar e, mais tarde, ter assistido a um recital de poesia em que Casimiro participou através de um telefonoscópio. O poeta tenta matar o narrador (ver se tem nome), e isso leva à descoberta de uma experiência em que o poeta se envolveu e que parte de uma ideia base muito interessante a nível de possibilidades. Um conto interessante e bem escrito, mas acho que lhe faltou qualquer coisa para ser realmente cativante.
Dedos (AMP Rodriguez) – Numa escola de autómatos, as coisas começam a correr mal. Um Inspetor da Brigada Especial para os Crimes Elétricos é destacado para investigar insubmissões de autómatos num contexto de aprendizagem de trabalhos criativos, nos quais os autómatos se encontram ligados aos humanos através dos dedos destes. Gostei do conceito, mas soube-me a pouco, uma vez que o final me pareceu um pouco apressado.
As Duas Caras de António (Carlos Eduardo Silva) – António Piedade trabalha num centro de investigação científica militar que tem em mãos projetos importantes para fazer face à toda-poderosa Germânia. A questão é que ele é ao mesmo tempo Frank Schertz, um espião alemão, que trabalhou com um tio da mulher na construção de um máquina que prometia fazer pender as forças para o lado de Portugal. É dos contos mais curtos da antologia, mas tem um bom ritmo e os twists tornam o seu desenlace interessante.
Electrodependência (Ana C. Nunes) – Num mundo dominado pela eletricidade, também os vícios dela dependem. O narrador desta história é um electrokinético, uma pessoa com poderes especiais que lhe permitem produzir uma droga derivada da eletricidade. Personagens bem desenvolvidas, um mundo bem caracterizado tendo em conta o tamanho da história e um enredo cativante com um final à altura são o que tenho a destacar de uma das histórias que mais gostei de ler nesta antologia.
Nanoamour (Ricardo Cruz Ortigão) – O diretor da Real Companhia Elétrica é confrontado com incidentes em bairros com torres Tesla por perto, nos quais as pessoas de estratos sociais mais pobres começaram a revelar estranhos comportamentos. Veio-se a descobrir que os campos farádicos alteram processos mentais, e o diretor utiliza esse conhecimento para utilizá-los como uma poção de amor científica e conquistar o coração da sua amada. O conto tem um conceito interessante, mas não fiquei fã da escrita excessivamente elaborada e romantizada para o meu gosto.
Energia das Almas (João Ventura) – Neste conto, explora-se a hipótese da transformação das almas que vagueiam por este mundo em energia elétrica. Apesar da ideia interessante e de um desenlace adequado, achei o texto algo fragmentado e penso que a personagem principal teria beneficiado de um maior desenvolvimento.
Fuga (Joel Puga) – Este conto foca-se no dia-a-dia de um programador informático que tem o desejo de ser escritor. Os dias de Tércio são todos iguais, repletos de tarefas repetitivas onde a imaginação e a criatividade são completamente abandonadas. Mas Tércio guarda sempre uma parte do seu dia para a escrita, sonhando um dia poder viver do que mais gosta de fazer. A crítica à literatura de massas, com livros que seguem a mesma fórmula, quase parecendo escritos por máquinas e não por seres humanos, é a principal mensagem desta história. E, se acho que é um tema interessante e que merece ser explorado, achei que aqui reclama para si grande parte do protagonismo que poderia ter sido mais partilhado com a ambiência destas histórias. De qualquer modo, achei que é um conto bem escrito e de leitura agradável.
Tratado das Paixões Mecânicas (João Barreiros) – No segundo conto deste autor presente na antologia, é desenvolvido o conceito de uma fábrica programada para se implantar em território inimigo, ajudada por uma espécie de humanóides, nos quais se inclui Unidade5. É pelos seus olhos que assistimos à tentativa de implantação de uma Matriz (a tal fábrica), com a ingenuidade e falta de espírito crítico que possui – não por sua culpa, mas porque foi assim que foi “feito”. Acho que o ambiente foi bem criado, e alguma confusão nos conceitos apresentados acabam por espelhar a forma como Unidade5 vai encarando tudo o que se lhe depara. Achei este um conto bem escrito e com bons conceitos, mas pessoalmente não foi o meu favorito da antologia.
O Obus de Newton (Telmo Marçal) – Neste conto são explorados os temas do colonialismo a da viagem à Lua, através de uma escrita elaborada e com tom muitas vezes cómico. Várias são as personagens, os cenários e a situações apresentadas; se achei positiva a diversidade narrativa, também me pareceu que a história perde alguma consistência por isso mesmo. De início, achei piada à escrita, mas às tantas comecei a achar o tom cansativo. Não fiquei fã deste conto.
Ex-Machina (Michael Silva) – O protagonista deste conto vê-se subitamente envolvido em sublevações de proletários que parecem possuídos por uma qualquer entidade. Um conto cheio de ação, com um protagonista bastante interessante e que aborda o tema da religião no contexto deste mundo ficcional. Gostei.
A Rainha (Pedro Vicente Pedroso) – Luís Galvão, um cientista marginalizado, procura uma forma de capturar a sua némesis, uma enguia elétrica gigante que mora no rio Tejo e com quem já teve um encontro no passado, contando para isso com a ajuda de duas crianças órfãs. Gostei da escrita, do enredo e do seu desenlace, num conto com a ambiência certa para esta antologia.
Taxidermia (Guilherme Trindade) – Este foi o meu conto preferido de todo o livro. O protagonista da história, taxidermista de profissão, vive um pouco amargurado pela necessidade cada vez menor dos seus serviços devido ao desaparecimento constante dos animais. Um pedido de colaboração da parte do Jardim Zoológico é o ponto de partida para o levantar de muitas questões e da descoberta da sua verdadeira essência. Trata-se de um conto escrito de forma cativante, com uma personagem principal bem desenvolvida e que atrai o leitor, uma contextualização perfeita com o universo desta antologia e um final fantástico. Muito bom.
Quem Semeia no Tejo (Pedro G.P. Martins) – Repescando a ideia das almas que vagueiam, de certo modo ligadas à eletricidade, este conto acompanha um médico chamado a assistir o Infante português, que padece de uma doença aparentemente ligada ao sobrenatural. Mas o médico acha que a epidemia que também assolou o Infante tem origem num mosquito transmissor de doenças. A resolução deste caso acabou por ser algo confusa e apressada, na minha opinião, e por isso não me convenceu.
Coincidências (Pedro Afonso) – O protagonista desta história conhece uma mulher misteriosa pouco tempo antes da passagem do ano 2000, cujos festejos acabam por correr bastante mal. Achei o conto bem escrito e integrado no universo da antologia, contudo a narrativa pareceu-me um pouco inconsequente e encontrei duas ou três incongruências com contos anteriores.
Chamem-nos Legião (João Barreiros) – Dos três contos de João Barreiros presentes na antologia, este foi o que menos gostei. Apesar da escrita impecável e do worldbuilding sólido (destaque para a ligação com os dois contos anteriores), o enredo não me cativou e o facto de ser o conto mais longo da antologia também não ajudou.
Classificação: 3/5 – Gostei