Entrevista a Tânia Ganho

É com muito prazer que hoje publicamos mais uma entrevista aqui no blog, desta vez à autora portuguesa Tânia Ganho, da qual li recentemente A Lucidez do Amor. É sobre esse livro que incide boa parte desta entrevista, pela qual agradeço desde já à autora e também à Porto Editora, por ter facilitado o contacto.

 

Estante de Livros“A Lucidez do Amor” aborda a guerra, principalmente na perspectiva feminina, das esposas que ficam em casa à espera que os maridos regressem. Considera que estas “heroínas” não têm sido devidamente louvadas, na literatura e nas artes em geral?
Tânia Ganho – Penso que não têm sido louvadas, porque simplesmente não são consideradas heroínas, são mulheres que vivem nos bastidores, na sombra e, como Penélope, ocupam um lugar secundário nas grandes narrativas sobre os feitos dos homens aventureiros.

 

E.L – Achei interessante a inclusão da Guerra do Ultramar na história, pelos contrastes que apresenta com as guerras actuais, acabando por ser muito semelhante no essencial. O que a motivou a incluí-la no livro?
T.G. – Precisamente para mostrar que, apesar de o conceito da guerra e a maneira de se fazer a guerra ter mudado muito desde o 11 de Setembro, na base continua a ser uma luta em que as pessoas matam e morrem, em que as famílias choram a perda dos seus maridos, mulheres, filhos e irmãos, e a dor é a mesma, de quem parte e de quem vê partir, seja em 2006 ou nos anos 60, sejam os intervenientes militares de carreira ou soldados recrutados «à força».

 

E.L. – O seu livro aborda (mais lateralmente) o tema da multiculturalidade, pois a personagem principal é portuguesa, descendente de uma guineense, casada com um francês, e vive em França. É um reflexo da sua experiência pessoal?
T.G. – Como vivo fora de Portugal há cerca de dez anos, vejo-me diariamente confrontada com o olhar dos outros, que me consideram «estrangeira», e com o meu próprio olhar sobre esses outros, que são forçosamente «diferentes» de mim e da minha cultura. O desejo de transpor essa experiência para os meus livros é inevitável, até porque as diferenças culturais me parecem extremamente ricas, do ponto de vista romanesco, e enriquecedoras, do ponto de vista pessoal.

 

E.L. – Outro dos temas do livro, muito pertinente na minha opinião, é se “vale tudo” por um suposto bem maior, no contexto da guerra. Acha que existe uma única resposta?
T.G. – Não, não existe uma única resposta e não existem soluções fáceis e imediatas para um dilema moral tão grande como esse, sobretudo para os militares, a quem é incutida a noção de dever e patriotismo, e a quem se pede que defendam a pátria num país longínquo como o Afeganistão que, para todos os efeitos, não está em guerra com a França nem com Portugal, nem com nenhum dos outros países que tem militares no terreno. Justificar as suas missões letais torna-se, por conseguinte, difícil. Seja como for, acho que os fins não devem justificar os meios.

 

E.L. – O último parágrafo do seu livro, “Dizem que o amor é cego, mas é a paixão que não vê defeitos e incoerências. O amor é lúcido, vê as falhas e as contradições e, apesar disso, subsiste.”, encerra, na minha opinião, uma lição tão simples como difícil de alcançar. Foi esta, em última análise, a mensagem que quis passar aos seus leitores?
T.G. – Sem dúvida. Quis mostrar ao longo de todo o livro que o verdadeiro amor é um sentimento capaz de ultrapassar todas as diferenças (sociais e culturais) e de aceitar o outro como ele é, com todos os seus defeitos e contradições. Mas não me refiro só ao amor que une um casal, mas também ao amor em sentido mais lato, entre as pessoas. Se tentássemos compreender o Outro, o desconhecido, o estrangeiro, e conseguíssemos aceitar as suas diferenças, provavelmente pensaríamos duas vezes antes de decretar uma guerra.

 

E.L. – Refere na nota final do seu livro que este demorou mais a ser escrito devido ao facto de tratar de um tema que lhe era próximo e doloroso (a guerra do Afeganistão). O seu completar, que significou o ultrapassar da “auto-censura” que refere, acabou também por ser uma espécie de libertação?
T.G. – Não se pode escrever com censura, a escrita tem de ser absolutamente isenta de tabus e interditos, por isso acabar este livro foi uma verdadeira libertação. Além disso, já tinha outro romance na cabeça e estava desejosa de me meter na pele de novas personagens, mas só consegui fazê-lo quando finalmente pus o ponto final em «A Lucidez do Amor» e me libertei, por assim dizer, das vidas da Paula e do Michael, com toda a angústia que lhes estava subjacente. Foi uma etapa da minha vida pessoal que se fechou para dar lugar a outra.

 

E.L. – Para além da escrita, tenho acompanhado com interesse o seu trabalho como tradutora. O que lhe dá mais prazer fazer (se é que consegue comparar as duas actividades)?
T.G. – A verdade é que decidi ser tradutora porque adorava escrever e tinha jeito para línguas. Como achei que não me agradaria escrever diariamente «por encomenda», eliminei logo a hipótese de seguir jornalismo, e como aos 21 anos era razoavelmente lúcida, percebi que não podia ter a veleidade de me autoproclamar escritora e viver disso. A tradução foi a via óbvia, por exclusão de partes. Adoro traduzir, mas é a minha profissão e não a minha identidade, foi uma escolha consciente. A escrita é quem sou, é qualquer coisa de muito mais profundo, inconsciente. É a minha maneira de viver, sempre com uma voz lá no fundinho a transformar a realidade em ficção.

 

E.L. – Qual o livro que, até hoje, mais gostou de traduzir e porquê?
T.G. – A Acidental, de Ali Smith, porque foi o maior desafio que tive até hoje. Ter de encontrar todas as referências culturais que estão «escondidas» no texto (títulos de filmes, fait-divers, letras de músicas) e adaptar para português um capítulo inteiro em versos decassilábicos foi uma missão tão complicada quanto divertida. Andei durante semanas a incomodar os meus amigos americanos e ingleses para me ajudarem a encontrar essas referências e passei horas no Google à procura de títulos de filmes do cinema mudo. Mas tenho de acrescentar que o segundo maior desafio, e igualmente gratificante, foi traduzir A Vida em Surdina do David Lodge.

 

E.L. – Com que género literário mais se identifica? Que livro recomendaria dentro desse género?
T.G. – Nunca gostei de rótulos, por isso evito pensar nos livros em termos de género. Digamos que tenho propensão para a escrita de mulheres e que adoro autoras como a Doris Lessing, a Margaret Atwood, a Joyce Carol Oates, a Jean Rhys, a Ana Teresa Pereira, a Teolinda Gersão, portanto recomendaria qualquer livro delas.

 

E.L. –  O que pensa da situação actual da literatura portuguesa e da importância dada aos seus novos valores pelas editoras e leitores?
T.G. – A literatura portuguesa – prefiro falar em literatura lusófona – está cada vez mais rica, com autores novos que conseguiram cativar uma enorme parte da população que não se sentia capaz de ler textos ditos «difíceis», como os de Lobo Antunes ou Saramago. A variedade nem sempre é sinónimo de qualidade, mas penso que a literatura portuguesa está em franca expansão e no bom caminho. As editoras andam a apostar mais nos escritores portugueses, mas ainda há muito trabalho a fazer nesse campo; temos autores, sobretudo mulheres, que mereciam muito mais destaque, como a Patrícia Reis e a Dulce Maria Cardoso. Espero que os leitores ensinem as editoras a valorizar mais os nomes que publicam.

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Sobre Célia

Tenho 38 anos e adoro ler desde que me conheço. O blogue Estante de Livros foi criado em Julho de 2007, e nasceu da minha vontade de partilhar as opiniões sobre o que ia lendo. Gosto de ler muitos géneros diferentes. Alguns dos favoritos são fantasia, romances históricos, policiais/thrillers e não-ficção.